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Texto: Daniele Bellini | Foto: Rudiney Freitas

Reportagem: Wemerson Ribeiro, Rudiney Freitas e Daniele Bellini | Edição de vídeos: Wemerson Ribeiro

Cultura

Caio César

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O relógio marcava 15h45 no dia 16 de junho de 2019. Em frente ao portão da Escola Municipal Miguel Vieira Ferreira, uma fila se formou para aguardar o início da peça Periferia Esperança, que seria realizada dentro do colégio. 

Nossa equipe de reportagem estava entre um grupo de 80 pessoas que esperavam para sentar enfileiradas em direção a um palco para assistir à apresentação. Ao primeiro passo no interior da escola, uma surpresa: os jovens atores mostravam o caminho que o público deveria seguir, contorcendo seus corpos e com uma feição séria e dura em seus rostos.

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Vítima de bullyng na infância, Caio usa a cultura como uma ferramenta de educação (Foto: Arquivo pessoal)

O primeiro ato ocorreu no corredor do colégio. A proximidade com cada integrante da peça gerava curiosidade no espectador. 

Na sequência, mais um espaço pouco provável acomodaria o público: uma sala de aula deixava todos aqueles corpos próximos, como em uma materialização da impossibilidade de distanciamento em relação às questões abordadas na peça.

Teatro da periferia, feito por quem mora nela. A peça terminou no pátio, com a celebração de histórias reais de pessoas que vivem afastadas do centro de São Paulo. 

Durante toda a narrativa vimos o protagonismo de corpos que cruzam a cidade, e os estados do Brasil. Eles encontram seus espaços, reivindicam seus direitos e desejos, e apresentam por meio de acontecimentos cotidianos sua diversidade.

Os aplausos ao final da apresentação, o choro de todos envolvidos e a emoção da plateia eram como um atestado da importância do trabalho desenvolvido por Caio César Teixeira. Transformar e encontrar novas maneiras de disseminar a arte são prioridades para o jovem líder do Usina dos Atos, movimento responsável pela apresentação do grupo teatral. 

Usina dos Atos

O menino tímido e retraído, que chegou a ter depressão durante parte do período escolar por não saber lidar com o bullying, em nada se assemelha à versão atual de Caio César. O jovem criador do movimento Usina dos Atos, de sorriso largo e olhar sonhador, sentia-se excluído da turma entre o terceiro e o sexto ano do ensino fundamental, o que atrapalhou seu processo de aprendizagem na escola.

“Chegou um certo momento, na sétima para a oitava série, que eu comecei a encontrar um caminho para transformar isso. O caminho era estudar mais, focar mais, mesmo que individualmente, para poder, por meio do estudo, fazer com que eu me sentisse fortalecido com essas coisas que me afetavam”, relembra. 

Além dos estudos, Caio buscou outros grupos de jovens para criar laços de amizade e relações mais saudáveis. Foi assim que ele descobriu atividades que o fizeram superar todas as dificuldades do início da vida escolar.  “Eu passei a frequentar grupos de jovens como em um centro espírita e essa relação permitiu que a gente desenvolvesse uma série de trabalhos artísticos, como teatro, apresentações artísticas e culturais”.

 

Aos 14 anos, Caio já apresentava melhora em seu rendimento nos estudos quando iniciou o ensino médio em uma nova instituição, a Escola Estadual José Marques da Cruz, situada no Jardim Vila Formosa, bairro da Zona Leste da cidade de São Paulo, vizinho à região onde o jovem sempre viveu com a mãe, irmãos e tia.

 

Foi lá que Caio começou a levar aos professores as questões que o incomodavam e os processos que julgava ineficazes no colégio. Essa característica questionadora o acompanha até hoje.

Aos 31 anos, o paulistano que sempre estudou em escolas públicas da cidade de São Paulo realiza o trabalho que acredita faltar nessas instituições: disseminar a cultura por meio das artes cênicas, valorizando o protagonismo dos jovens, o fazer artístico e a criação de novos grupos e líderes. 

Para ele, o formato de ensino vigente não consegue impactar todos os alunos: “As pessoas têm suas singularidades, mas como trabalhar isso no processo de desenvolvimento? A escola não dá conta nesse formato (crianças sentadas enfileiradas, de costas umas para as outras, todas direcionadas para a figura do professor). Como podemos repensar isso?”

Esses questionamentos foram fundamentais para a construção da identidade de Caio. A curiosidade, a vontade de aprender e todas as inquietações de sua infância e de sua adolescência se transformaram no movimento Usina dos Atos, criado quando ele ainda estava na faculdade. “Ela reúne uma série de coisas que eu sempre quis fazer desde criança. O Usina me permite trabalhar e investir meu tempo em tentar transformar todas essas questões de alguma forma”, explica. 

Antes de ingressar na vida universitária, Caio fez cursos de teatro e profissionalizantes que ofereceram importantes ferramentas para a fundação do movimento. “Além do teatro, que foi transformador em minha vida, o espaço CENLEP (Centro Nosso Lar de Educação Profissional) me permitiu desenvolver outras habilidades que me ajudaram na questão da comunicação e relacionamento”.

Lá o jovem teve a indicação de outra ONG, o Instituto Criar de TV e Cinema, mais voltada às questões artísticas e culturais. Isso o levou a fazer um curso de Assistência de Direção e Roteiro. De indicação em indicação, chegou ao Banco de Eventos, uma grande empresa no segmento de live marketing. “Quando entrei na faculdade, em 2008, eu já tinha um ano de experiência nessa agência e, com essa bagagem, foi possível potencializar aquilo que eu estava aprendendo”.

Durante o ensino superior, Caio migrou de Publicidade para Relações Públicas, curso em que é graduado. Foi então que surgiu a ideia de produzir um espetáculo teatral: “Como eu tinha formação em Roteiro, juntei uma galera da faculdade ー tinha gente de Rádio e TV, Jornalismo, Publicidade ー e foi quando nasceu a ideia do Usina como produtora. O objetivo era produzir espetáculos, e ele ainda não tinha uma função social como tem hoje”.


As atividades do movimento ficaram mais sérias, e muitos envolvidos resolveram deixar o Usina antes de sua consolidação. O trabalho de captação de recursos para a produção dos espetáculos exigia muita dedicação. “O projeto foi um pouco por água abaixo logo no primeiro ano. No ano seguinte retomamos a ideia, com outro grupo, só que aí com a visão social, de formar jovens artisticamente. Então nasceu o projeto 1a CENA, que já existe há 10 anos”.

1ª CENA

O Usina dos Atos se estabeleceu e ganhou corpo com o projeto 1a CENA, que trabalha com jovens de escolas públicas da Zona Sul da capital paulista, na região da Capela do Socorro e na Zona Leste, na região de Guaianazes, Cidade Tiradentes. Cerca de 300 jovens já passaram por ele.

 

O programa oferece aulas, oficinas teóricas e práticas, encontros com profissionais de teatro, produção de exercícios interdisciplinares, criação de roteiros, atividades para exercitar a comunicação, expressão e criatividade. 

 

No encerramento de cada curso, é realizada uma peça teatral, idealizada, roteirizada, produzida e encenada pelos integrantes do 1a CENA. Tudo ocorre sob a orientação e olhar atento dos educadores, em sua maior parte voluntários.

Voluntários x  investimento

Para Caio, o voluntariado é um dos maiores desafios em sua liderança no Usina dos Atos. O fato de o movimento não ser sustentável financeiramente dificulta a manutenção e a permanência de profissionais que trabalham sem receber um salário.

 

“Todos os recursos aplicados no projeto, sempre tirei do meu bolso, claro, nas minhas possibilidades, para fazer com que o projeto acontecesse. Eventualmente outras pessoas ajudaram também”, conta Caio.

 

Em uma década de existência do Usina, o jovem líder já viu muitas pessoas deixarem o movimento, o que ele atribui à falta de investimento. “A questão financeira acaba impactando em tudo. Então você me fala ‘Caio, se não tiver recurso não acontece?’ E eu respondo ‘Não, nós somos prova viva de que acontece, a gente faz acontecer, mas a falta de investimento gera uma série de problemas que poderiam ser evitados”.

 

Este ano, Caio iniciou um trabalho mais forte de cadastro do Usina no setor público. Ele quer buscar parceiros para dar sustentabilidade e ampliar as ações já existentes. Para se ter uma ideia, o projeto mais importante do movimento, o 1a CENA, custaria 250 mil reais para funcionar de forma completa.

"Eu acho que sou um sonhador. Eu costumo não desistir das pessoas

e eu acho que é isso que me faz acreditar nesse trabalho e estar aqui até hoje,

mesmo diante de todas as dificuldades"

— Caio César

 

Priscila Tessuto, atriz e arte-educadora, se tornou grande amiga de Caio durante trabalhos realizados no Usina. A ex-colaboradora diz que o paulistano não espera as coisas acontecerem: “Ele é de arregaçar a manga e fazer, não é um cara que tem vários projetos e fica esperando alguém dar um espaço, alguém dar um dinheiro. Não, ele faz. Ele é capaz de fazer um projeto no meio da praça, com quem estiver passando lá”. 

Dez anos e contando

Em 2019, o Usina dos Atos completa dez anos. As conquistas que o movimento teve durante seu desenvolvimento fizeram com que Caio tomasse a decisão de se dedicar integralmente ao desenvolvimento de suas atividades: “Ainda que o sentimento de desistência tenha vindo, tudo aquilo que conquistamos, os impactos que os projetos causaram na vida das pessoas e até na minha vida, isso sempre vem à tona. Então, eu penso ‘como posso desistir de tudo isso?’ ‘Eu não posso parar, existem outras pessoas esperando por essa iniciativa e isso me dá motivação para continuar’”.

 

Para Caio, ver a felicidade dos alunos que se formaram no 1a CENA ao criarem seus próprios grupos e conseguirem captar recursos para a produção de seus projetos são as maiores conquistas de sua luta. “Ver alunos na EAD (Escola de Arte Dramática da USP), ver jovens construindo sua vida na arte, a partir da sensibilização que tiveram no projeto”, diz o jovem líder.

"Ele transforma tudo em uma família. Eu vejo o carinho que

os educandos da minha época têm com ele até hoje"

— Priscila Tessuto


Adaílton dos Santos Junior foi aluno do projeto na edição de 2016/2017. Hoje, aos 19 anos, acredita que, sem a presença de Caio no Usina, provavelmente não teria descoberto seu interesse pelas artes cênicas: “Foi graças ao projeto que descobri o meu amor pelas artes cênicas. No momento curso o ensino superior em teatro. Sem a participação de Caio no Usina, eu não estaria onde estou hoje.”

Futuro do movimento

O crescimento de Caio na liderança do movimento que fundou depende, neste momento, do sucesso na captação de recursos financeiros. Esse resultado pode ser um divisor de águas na história que o jovem está escrevendo no Usina dos Atos.

 

“Fizemos cadastro nas leis de incentivo municipal, estadual e federal. Por essas leis temos aprovação do governo para captar recursos das empresas, e elas podem fazer o abatimento de imposto. Fora isso existem os editais públicos e outras possibilidades para dar sustentabilidade ao movimento”, explica.


Caio também enfrenta desafios no cenário político atual, com cortes de investimento em Cultura. Pesquisa divulgada pela Rede Nossa São Paulo em parceria com o IBOPE Inteligência, em abril deste ano, mostrou que houve redução de 10% dos recursos destinados à Secretaria Municipal de Cultura. No âmbito estadual, a diminuição também aconteceu, e o governador João Dória justificou o contingenciamento ao citar as áreas que são prioritárias para seu governo: Educação, Saúde, Habitação, Segurança Pública e Assistência Social.

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Dados: Rede Nossa São Paulo | Ibope Inteligência (Arte: Wemerson Ribeiro)

“Todos os cortes e questões políticas que estamos vivendo hoje interferem sim, principalmente nesse momento em que estamos procurando recursos para manter os projetos. Isso faz com que o desafio seja maior. Eu olho para esse momento de confusão, de caos, como um momento para as pessoas debaterem, refletirem, questionarem uma série de coisas”, comenta Caio.

 

Para Carlos Eduardo Bonini, especialista em regulação da atividade cinematográfica e audiovisual na ANCINE (Agência Nacional do Cinema), esses cortes impactam a sustentabilidade de todo o meio. “Na indústria cultural os recursos são destinados a muitas empresas e profissionais. Em uma peça de teatro, por exemplo, você tem os atores, figurinistas, o espaço, maquiador, entre outros envolvidos. No cinema então nem se fala, você tem várias empresas na cadeia de valor, muitos profissionais.”

 

Com o corte abrupto esses profissionais são privados em trabalhar na área e precisam buscar outras fontes de receita. A cultura volta a ser um hobby em suas vidas. “O efeito mais imediato é um esvaziamento do mercado. Com isso perdemos os avanços que aconteceram. Esses profissionais levaram um tempo para se aprimorarem, para se especializarem. O custo para retomar isso é muito grande no futuro”, completa Bonini.

O otimismo de Caio frente aos desafios faz com que ele projete seus próximos cinco anos na liderança de um movimento cada vez mais sólido: “Eu me imagino no Usina. Espero que ele esteja com recursos para desenvolver os projetos e ampliar o impacto das ações. Espero que o resultado dos passos que estamos dando agora, se reflita nos próximos anos”.

 

Para isso, Caio já conta com uma agenda repleta de atividades para o Usina dos Atos. Em 2020, ano em que o 1ª CENA completará 10 anos, o movimento pretende lançar o 1ª CENA Dramaturgias, livro com o texto teatral da peça Periferia Esperança. 

 

Outro projeto que está em planejamento é o Clube de Atividades, uma iniciativa voltada para fomentar a memória dos bairros, o desenvolvimento e criação de novas iniciativas. Uma das ações do Clube é uma Biblioteca Digital, em parceria com escolas e associações.

Três perguntas

O que é cultura para você?

Cultura para mim é fruição, é você poder vivenciar de forma ampla, com liberdade tudo aquilo que você aprende, tudo aquilo que você troca no mundo com as outras pessoas, tudo aquilo que você descobre, experimenta no mundo, nas relações. Cultura não é algo que a gente dá para as pessoas, todo mundo tem cultura. Ela se desenvolve a partir dessa troca, dessa relação. Então quando eu encontro com você, você tem visões de mundo que muitas vezes eu não tenho, mas eu tenho outras coisas que eu aprendi, que eu conheci ao longo da minha trajetória. Então cultura é essa troca, eu vou aprender com você, você vai aprender comigo.

Qual seria seu posicionamento caso algum partido político quisesse financiar um projeto no movimento Usina dos Atos?

Não achamos legal nos vincular com algum partido, pois isso pode gerar uma série de questionamentos. Mas existe uma forma de captação que são as emendas parlamentares. Os deputados, vereadores têm acesso a essas emendas e eles indicam uma instituição do terceiro setor que pode captar recurso de emenda. E aí de certa forma existe um vínculo? Existe, pois de certa forma quem te indicou foi um deputado, vereador de determinado partido.

Qual a origem do nome do movimento?

O nome nasceu antes mesmo da proposta estrutural do Usina. Em 2009, quando estávamos pensando em montar o espetáculo, pensando no nome, a primeira coisa que surgiu foi Usina. Em novembro daquele ano teve um apagão que pegou o Brasil inteiro e estávamos na faculdade nesse dia, inclusive discutindo qual seria o nome do projeto. A faculdade dispensou os alunos e as pessoas estavam desesperadas na rua, parecia fim do mundo. Ficamos pensando no quanto a falta de energia pode impactar a vida das pessoas. E o que aconteceu naquele dia foi um problema em uma usina e a gente pensou em colocar Usina. Mas aí precisava de um complemento. Usina surgiu por essa questão, pela importância de uma usina na vida das pessoas. Ao mesmo tempo uma usina, às vezes, tem um impacto negativo. Dependendo da usina tem um impacto ambiental negativo. Então a gente começou a pensar nesse lado negativo do nome. E aí a gente ficou discutindo muito essa coisa da atitude, de fazer algo que transforme e foi quando surgiu o dos Atos. Então ficou Usina dos Atos. Atos no sentido de atitude, de fazer a diferença.

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